Tic Tac... Tic tac...
Tic Tac...
Os pensamentos faziam
em sua cabeça. Faziam desde sempre e fariam para sempre. Suas mãos velhas e os
ossos frágeis doíam. A mudança de temperatura sempre era surpreendente. Os
cabelos finos, grisalhos e longos, caíam por cima dos ombros encurvados. O
manto que lhe cobria o corpo negro e magro era azul, tão azul e tão intenso
quanto alguma coisa pode ser. Em seus detalhes, pequenos pontos dourados vindos
do grande primo Sol, que ainda era rei e que por algum tempo ainda reinaria.
Apenas os dentes do velho eram intocados por ele mesmo, mas para o resto de si,
cada marca no frágil corpo relatava como o tempo passa para o próprio Tempo,
que já não queria mais existir, mas que era quem reinava na Terra.
Apesar de não querer
mais, não podia simplesmente fechar os olhos, precisava da permissão e, para
isso, de alguém para ocupar o seu lugar. Mas já não queria mais esperar, a
paciência se fora, mas a ordem nunca vinha. Apenas esperava por ela.
Há séculos decidiu se
mudar para uma caverna escondida e que nenhum homem comum, um mortal qualquer,
jamais imaginaria onde se localizava. A caverna se estendia por toda extensão
subterrânea do planeta, entre túneis e mais túneis que se cruzavam com outras
cavernas. O chão gelado e úmido. As
paredes grafite e pétreas. É claro que seriam. Gostava de caminhar por
incontáveis horas fingindo estar perdido e fingindo se surpreender quando
chegava a algum lugar na superfície. E andava por horas e horas a fio e, quando
queria descansar, fechava os olhos e adormecia. O mundo estagnava ao seu bel-prazer
e só voltava a girar e os relógios a trabalharem no momento em que Tempo abria
de novo os olhos cansados de viver. Há anos perdera a razão de existir, o que
era visível em sua aparência idosa e vulnerável.
Como em muitos dias,
Tempo saiu andando por aqueles túneis intermináveis, mas desta vez não tentava
se enganar sobre o próprio destino. Ia visitar uma velha amiga, se é que ela
era amiga de alguém, que morava em um pequeno castelo belga com um lago
artificial e quadrado, mas com patos de verdade que faziam questão de voltar
todo verão.
– Não esperava que
viesse hoje – disse a mulher assim que Tempo entrou no grande salão.
– Preciso da sua
ajuda.
– Ainda o mesmo
desejo? Você precisa seguir em frente. O tempo é o melhor remédio para curarmos
as nossas feridas – e riu da própria piada. A anfitriã tinha a pele branca num
tom leitoso em forte contraste com os cabelos e olhos intensamente pretos e que
pareciam rir a cada palavra.
– Não estou aqui para
as ouvir as suas gracinhas, Morte. Só quero a resposta que sempre me nega.
– Sabe que... Caos
também me visitou atrás de uma profecia?! Queria saber do próprio futuro. Ouviu
dizer que você está desgostoso e... pela sua aparência, querido amigo rei, acho
que os boatos são verdadeiros – disse o olhando de cima a baixo e se aproximou,
mostrando os extensos cabelos que roçavam o chão de pedra. – Ele está louco
para ter de volta o trono que você roubou – sussurrou aos ouvidos de Tempo.
– Não me interessam as
aspirações de Caos. Apenas quero a minha resposta. O meu sucessor.
– Sucessora.
– O quê? Sucessora? Não
é possível.
– E por que não? Acha
mesmo que o grande Tempo, o Tempo Rei não poderia ser enganado por uma mortal
qualquer?
– Não fale assim dela,
Morte.
– Falo, porque é o que
ela é. Não pense que porque você deu tanto de si a ela, a sua querida Morgana
virou alguém especial. Ela te enganou. Por todos os anos que você a manteve
viva e em segurança, ela apenas mentiu para você. Sua mãe não te ensinou que
deuses nunca entregam seus corações a mortais? Eles é que são as peças do jogo,
não nós – e parou por alguns segundos encarando o velho que lidava com uma
amarga verdade. – Você tem alguém para herdar o seu trono, quem você achou que
pertencia a mim, mas em quem eu nunca toquei. Quem te traiu não fui eu. Lilith
vive, meu caro amigo, Cronos – e deliciou-se com a dor daquelas palavras.
Da
entrava da caverna em que Tempo vivia, muitos túneis saíam e levavam a grutas
de todos os tamanhos e com funções diferentes. A maior e mais impressionante
era a Gruta do Trono. Uma luz azul clara iluminava as paredes de calcário
escuro, material de que também era feito o trono ao centro. O rei parecia
perdido em meio a pensamentos dolorosos e amargos. Ao lado dele, de pé, uma
mulher parecia estar em transe. Com as mãos posicionadas acima de um globo de
cristal bruto e esverdeado que flutuava, mas sem o tocar, a mulher sibilava
palavras incompreensíveis. De repente, a mulher despertou.
–
Você sempre faz um excelente trabalho, Dia – Tempo elogiou com um sorriso
sincero, mas amargurado.
–
Obrigada, senhor. Hoje o céu estará de um azul muito bonito, apesar do frio.
Estará lindo.
–
Você sempre acha o céu bonito, Dia, ainda que faça as nuvens desabarem sobre os
humanos – intrometeu um homem de roupas escuras como uma noite sem estrelas.
–
A chuva traz a vida, assim como o brilho do sol. Pensei que já tivesse lhe
explicado isso, Noite – retrucou a mulher.
–
Trezentas e quarenta e oito – disse Tempo. – E com essa, ela te disse trezentas
e quarenta e nove vezes, Noite. Mas não foi para isso que eu chamei vocês.
Preciso achar a minha filha.
–
Tempo, Lilith morreu ... – lembrou Noite.
–
... há séculos – completou Dia.
–
Parece que não. Eu fui enganado. Morgana mentiu para mim.
–
Mas por que ela faria isso? – indagou Dia.
–
Eu não sei. E talvez eu nunca saiba – lamentou. – Mas ela é a nossa esperança
contra Caos. Lilith vai me suceder, e quero que vocês a encontrem. Mandem os
quatro irem procurar a minha filha.
–
Três, senhor. Em poucas semanas será inverno – corrigiu Noite.