segunda-feira, 13 de setembro de 2021

O enfeite

    Era uma vez um lugar. Seu tamanho ia além do que os olhos podiam alcançar. Ele ia para sempre eternamente. Com um campo de grama rasteira e verde, macio macio que podíamos andar sem nada a proteger os pés. Abraçava o nosso caminhar e nos deixava ir.  

      Milhares de árvores frondosas e cheias de frutos enfeitavam os arredores do campo. E a vida vinha de um rio de água brilhante e gelada que cortava o lugar. Cortava para trazer energia boa e necessária. Arbustos com flores coloridas alegravam os detalhes. Fazia o nosso olhar sorrir. 

        No meio, bem no centro do campo, havia uma casa. Suas estruturas iam a fundo no chão, para proteger dos vendavais. Mas ninguém morava ali. Vazia vazia que aprendeu a ser assim, como se o papel de uma casa fosse enfeitar.  Talvez, daquela casa, fosse. 




quinta-feira, 11 de março de 2021

O Senhor Tempo (Capítulo III )

Os seus pés descalços caminhavam brancos e gelados pelo chão frio de pedra. A Câmara das Velas era o seu lugar de maior prazer. Confortava-se em ter perante si as almas tão insignificantes dos mortais, seres ainda mais insignificantes. Nasciam, viviam mediocremente e então a alimentavam, momento em que tinham alguma serventia. “Que curioso o Tempo. Só queria fechar os olhos e dormir”, como ele podia ter se tornado tão estúpido? Não fazia sentido. Claro que a morte de Tempo seria boa para ela, a fortaleceria. Não era todo dia que um deus de poderes tão magníficos quanto os dela se rendia. Contudo, a Tríade do Equilíbrio Divino deveria ser assim, equilibrada. Assim que alguém ocupasse o lugar de Cronos, tão logo ela perderia os poderes do deus. Serviria então somente como um receptáculo, e ela não queria isso. Desejava aquele poder para, diante de toda a criação, reinar absoluta.

Caminhou por entre as pilhas e os amontoados de velas. Algumas brilhavam tão forte que poderia jurar que durariam ainda centenas de anos. Mas eram essas as suas preferidas. Deleitava-se em ver o desespero na cara dos humanos. Prendiam-se a cada coisa banal. Prendiam-se à própria vida e, mais tediosamente, à vida dos olhos, tornando-se fracos, vulneráveis, suscetíveis. E em duas pilastras, as velas que nunca poderia tocar. Apenas seus próprios donos poderiam apagar as chamas. Para a própria alegria, logo, logo Tempo viria a sua presença e, naquela sala, perante seus irmãos, apagaria a própria vela.

Como aquilo a irritava. Não podia dominar aquelas chamas. Caos e Tempo jamais se curvariam a ela de bom grado. Como ela queria poder tocar na vitalidade deles. Seria tão poderosa se fosse a única. Como aquilo a irritava. Irritava. Uma emoção tão humana e tão patética. O que a irritava ainda mais. Mais. Mais.

Apagou uma vela brilhante. Uma chama tão vermelha de uma jovem na majestade da juventude e da força.

Deliciou-se naquele prazer. Apagou a vela e alimentou-se.

– Quando você chegou aqui? – perguntou ao deus que estragava seu momento de diversão.

– Isso faz diferença? – Caos respondeu entre um trago e outro de um cigarro. Os cabelos ruivos e perfeitos se avermelhavam pelas chamas das velas.

– Depende da razão de estar aqui – Morte retrucou.

– Aposentou seus poderes, Oráculo?

Morte o encarou. O rosto branco e cadavérico da deusa retesado.

– Me acompanhe.

Deu as costas a Caos e tão logo estavam em uma outra câmara.

– Sempre me surpreendo com o tamanho infinito desse seu pequeno castelo.

Morte não respondeu. Caos sabia como funcionava o castelo. Era, na verdade, um local de passagem somente para diversas outras dimensões em que cada câmara ficava, o que se tornava necessário para a explanação total de cada um dos poderes da deusa.

Estavam agora em uma grande sala sem chão. Toda num tom anil profundo. No centro da sala, apenas um punhado de alguma coisa que se assemelhava a um globo de fumaça se movimentava de modo irregular. Morte e Caos pararam diante dele. A deusa ergueu os braços e o rosto. “Possua-me”, pensou. A fumaça entrou na deusa pelo nariz e pela boca. Morte então assumiu uma forma fantasmagórica. Os olhos de Caos ficaram negros, tão negros, totalmente, para lhe mostrarem a profecia. E o deus a viu.

Viu.

Morte voltou à forma normal, observando o desespero de Caos.

- Era para você ter me mostrado o futuro – sussurrou.

- Oh, Caos, querido... às vezes, somente o passado é capaz de nos mostrar o futuro com clareza.

- Você não tem o direito de manipular as lembranças – cerrou os dentes brancos e perfeitos.

- Mas eu não manipulei – defendeu. – Apenas mostrei a verdade, tudo o que aconteceu. Você precisa aceitar.

- Não. Lilith jamais faria isso comigo.

- Mas ela fez. E agora, vai terminar.

- Cronos quer morrer, não faz sentido – lembrou confuso.

- Oh, Caos. Você acreditou mesmo nisso? Lilith voltou para terminar o que havia começado. Ela jamais te amou.

- Pare de mentir. É só isso que você faz? Mentir?

- Eu? Mas quem mentiu não fui eu – riu. – Ela jamais te amou.

- CALE A BOCA!! – esbravejou Caos, provocando um tremor no ambiente vazio e sem chão.

- Não adianta espernear, Caos, querido – sibilou Morte. – É nisso que dá o amor – sorriu.

 


 

Alguém bateu à porta, mas, novamente, Lilith não respondeu. Passava os dias deitada, tentando negar as lembranças e as próprias ações. A comida se acumulava em um canto. Às vezes beliscava uma coisa ou outra, ainda que não sentisse fome.

Alguém bateu à porta outra vez e continuou a ser ignorado.

Contudo, assim que parou, Lilith levantou, por mais que quisesse continuar deitada, com os cabelos cacheados e bagunçados, calçou os chinelos em pantufas e saiu pela porta destrancada sem que usasse qualquer chave visível. Seguiu pelo corredor, por mais que quisesse ficar no quarto de pedra. Chegou à sala em que agora Tempo jantava em companhia de Dia, Noite, Verão, Inverno e Primavera, em meio a risadas e troca de ofensas amigáveis.

– Até que enfim, querida. Pensei que fosse viver para sempre naquele quarto.

– E gostaria de ficar mesmo – respondeu fazendo um silêncio absoluto entrar batendo as asas, pairar e pousar por sobre a câmara.

– Ah, por favor... junte-se a nós e coma. Eu estava com saudades da minha filha.

– Por favor digo eu. Não me insulte. E eu não vou fazer o que você quer.

Tempo parou a mão que levava à boca o garfo com um gordo pedaço de rosbife. Devolveu o garfo ao prato e recostou-se à cadeira, fitando Lilith, que o encarava da outra ponta da mesa.

– Você nem mesmo sabe o porquê...

– JÁ DISSE PARA NÃO ME INSULTAR! EU SEI EXATAMENTE O QUE VOCÊ QUER E MINHA RESPOSTA É NÃO! – esbravejou.

– Apenas ouça o que seu pai tem a dizer... – Dia tentou mediar.

– Esse velho não tem nada para mim – cortou. – Ele só quer me usar e eu não vou fazer o que ele quer. Não de novo – afirmou saindo sem olhar para trás.

Todos à mesa se perguntaram do que Lilith dizia. Como “de novo”?

Enquanto isso, Tempo apenas afirmava para si mesmo “Sim, você vai fazer, Filha de Cronos”.

terça-feira, 2 de março de 2021

O Senhor Tempo (Capítulo II )

               Verão, Outono e Primavera, os três observavam em meio às árvores esperando por alguma coisa.

               – Que droga! – resmungou Outono – Se Inverno estivesse aqui, já teríamos conseguido.

            – Eu não sei por que ainda me espanto com o quão machista você pode ser, Outono – reclamou Verão, a única garota do grupo.

            – Não sou machista. Estamos no século XXI e vocês mulheres já se mostraram muito competentes para algumas coisas.

            – Isso é ser machista – alertou Primavera.

            – Ah, fica quieto, você gosta de flores.

            – E qual o problema nisso? As flores têm grande importância para a vida.

            – Calem as bocas!, vamos acabar perdendo o aviso – brigou Verão. – Primavera, ela já deu o sinal?

            – Ainda não, mas vou perguntar outra vez – e os olhos de Primavera, um rapaz com fortes traços indígenas e cabelos compridos, assim como Outono e Verão, ganharam um brilho diferente e o jovem pareceu entrar em uma espécie de transe.

            Enquanto isso, dentro da casa de Lilith, ou Lívia, como era conhecida no pequeno vilarejo em Pucón, onde morava há alguns anos, uma pequena esquila a observava por entre um esconderijo e outro que encontrava em meio à mobília.

            “Alguma novidade?”, Primavera perguntou em meio aos pensamentos da roedora.

            “Ainda não (quick). Ela está (quick) fazendo alguma humanidade que não entendo (quick)”, respondeu a esquila que via curiosa Lilith correndo em uma máquina estranha que não a permitia sair do lugar.

            “Está demorando demais”, reclamou Primavera.

            “E o que você quer que eu faça (quick)? Era para eu estar (quick) me preparando para dormir. Vou perder o inverno inteiro aqui (quick) e espero não congelar (quick), voltando para a minha árvore.”

            “Não precisa se preocupar com isso. Já te disse várias vezes”, Primavera se irritou e, do lado de fora da casa, virou para os companheiros: – Ela ainda está acordada.

            Por mais que já estivessem cansados, o trio não tinha outra opção a não ser esperar e esperaram por ainda longos minutos que se prolongaram por longos outros minutos e quem sabe horas.

            “Ela tem espuma na boca (quick). Está alisando (quick) as presas”, avisou a esquila de repente para Primavera, parecendo aflita.

            – Rápido! – Primavera quase gritou em um sobressalto. – Ela está indo dormir.

            Primavera, Verão e Outono, se desembrenharam das árvores que os escondiam e se puseram a caminho da casa. Como combinado, a esquilinha comunicou assim que Lilith dormira e saiu por uma fresta da porta da cozinha que dava para as árvores ao fundo. Na mesma hora em que a pequena roedora saiu, Verão iluminou com leves, mas calorosos, raios de sol para proteger a espiã do frio da noite quase invernal.

            “Obrigada, Qüiczzar”, agradeceu Primavera quando a esquila passou por eles. “Não vou me esquecer do seu pagamento.” e sorriu satisfeito.

            “Espero (quick) mesmo,” retrucou com um mexer do focinho “e se (quick) vier com nozes pequenas, nem adianta (quick) me pedir outro favor (quick)!”, e com o levantar presunçoso da cauda, correu até a árvore em que morava e a escalou depressa.

            – Rum... não se fazem mais animais como antigamente. Há alguns séculos era uma honra realizar uma tarefa ao deus Primavera, agora, eles estão assim – comentou com os outros dois que, apesar de não terem participado da conversa telepática entre criador e criatura, sabiam que Qüiczzar era uma rebelde incorrigível.

            – Não ligue, irmão. Certamente é culpa da internet – Outono tentou se solidarizar, ao que o outro assentiu.

            Os três caminharam então até a porta, que logicamente acabara de ser trancada. Contudo, Outono se aproximou da fechadura e soprou um ventinho obediente que logo destrancou a passagem.

O mesmo vento pegou a caixa que Tempo mandara à filha e a levou pela casa até chegar à mesa de cabeceira ao lado da cama de Lilith. Abriu a tampa e, junto da areia dourada que a caixa guardava, o vento começou uma dança suave e bonita. Rodopiavam pela mesinha de cabeceira, e em seguida pela colcha de retalhos coloridos e alegres com que a moça se aquecia naquela noite fria que precedia o inverno. Para um lado e para o outro, unindo-se em um só, formando um pequeno redemoinho dourado. E foram indo até chegarem ao rosto da moça que, adormecida, não fazia ideia do que acontecia. E então, ao chegarem, a areia entrou pela boca entreaberta que suspirava um sono inocente para assim formar os sonhos de uma jovem bruxa.

 



Lilith caminhava aos pés em neve do vulcão há anos seu vizinho. Villarica era majestoso e fazia com que a bruxa se sentisse confortável, mais conectada à natureza. Subia descalça e sentia os dedos dos pés rígidos pela neve branca. Podia jurar que seus poderes, há tanto tempo adormecidos, pareciam despertar, mas de forma tão dócil e amigável, que seu coração bateu feliz. A moça se agachou e passou a mão pela rocha de Villarica, de forma a acariciar não só o vulcão, mas a natureza.

            “Eu não quero sair daqui nunca, Rucapillán”, falou com seu coração ao espírito que ali morava e começava a surgir a sua frente.

            “Mas você não poderá ficar aqui, Filha de Cronos.”, Rucapillán avisou. Era como um espírito indígena cuja fisionomia parecia sempre mudar.

            “Não me chame assim, por favor. Gostaria de esquecer.”

            “Nós nunca podemos fugir do que somos. Está ligado ao nosso destino. Não se esqueça disso nunca, Filha de Cronos.” disse o espírito indo embora, caminhando para o nada.

            “Rucapillán, por favor, não me deixe sozinha. Por favor! Eu não quero ter que ir. Me deixe ficar!”, implorou a moça correndo para o amigo que logo sumiu.

            Mas quando Lilith ia voltar a chamar por Rucapillán, o vulcão, para quem estava agora de costas, explodiu em lavas e muita fumaça. A erupção expeliu uma enxurrada de magma que veio na direção da bruxa. Lili começou a correr, há séculos se recusava a usar seus poderes, ou Tempo logo a acharia. Corria e corria, descendo a montanha, contudo, por onde ia, aquela mistura de terra e fogo a perseguia, como se a quisesse alcançar. Então, o chão começou a abrir pequenas fissuras, de onde raízes saíam vorazes e tentavam segurar os seus pés. Evitou a primeira, a segunda, até a terceira, mas em algum momento, uma das raízes como um forte tentáculo se enroscou no tornozelo esquerdo e a prendeu. Lilith caiu e antes que pudesse tentar se soltar, um braço depois o outro foram amarrados ao chão pela planta, se assim podia chamar. E por fim, a perna esquerda.

            A lava então alcançou a bruxa e, formando uma onda viva de magma, se atirou sobre ela, que apenas fechou os olhos o mais apertado que podia. Segundos se passaram, e ao abrir os olhos, Lilith se viu envolta não pela terra incandescente, mas por um campo de força que se monstrava indestrutível.

E a bruxa chorou.

Chorou não por causa da lava e das raízes. Não por causa do susto e de toda adrenalina. Nada daquilo a amedrontava. A lava começou a voltar ao vulcão e as raízes a soltaram. Foi quando ela viu o que a fazia fugir tanto. Viu o que a aterrorizava. Ela o viu.

No topo do Villarrica, ele a encarava. A olhava e começava a vir na direção da moça.

“Finalmente” a voz dele dizia dentro da cabeça de Lilith. “Depois de tantos anos eu finalmente te encontrei, Filha de Cronos...”, a voz continuou enquanto ele se aproximava.

– ... minha filha – sorriu Tempo.

Lilith acordou.

Sentia o corpo formigar e a cabeça doer. E ao olhar ao redor, todos os móveis do quarto flutuavam, inclusive a cama em que dormia e, no ar, uma mensagem pairava:

Espero por você. Tempo.

 

 

Morte observava o céu do pôr do sol que se emaranhava às folhas das árvores da floresta ao redor de seu pequeno castelo. Sentia a cada segundo alma por alma que a fortalecia e alimentava. Mas, principalmente, aguardava o carro que vinha agora pela estrada de terra. O One-77 branco parou impecável, sem qualquer sinal de poeira até mesmo em suas rodas.

Um homem alto e ruivo, com um perfeito terno alinhado, assim como os cabelos e a barba, desembarcou em seu Vanquish II em kirgzy cinza-escuro feito sob medida. Os olhos azuis eram perfeitos. Tudo era perfeito.

– Por isso gosto de te esperar. A sua beleza é quase uma obra de arte – sorriu Morte.

– E a minha pontualidade.

A mulher apenas sorriu. Era verdade. Tudo em Caos era infinitamente perfeito. Nem mesmo um pelo de sua sobrancelha ficava em desalinho.

– Acredito que já saiba das novidades – Morte falou mansa, quase não dava para ouvir sua voz doce e hipnotizante.

– Os meus ouvidos estão por toda parte, ainda que Tempo tente manter segredos de mim.

– Vamos dar uma volta – convidou a mulher.

Os dois foram caminhando em torno do lago e pararam em um deque circular que se estendia por cima da água. Caos tirou do bolso um pedaço de pão e começou a jogar aos patos.

– A única questão que me parece tão inacreditável é o fato de Lilith ter vivido por tantos anos se escondendo de todos nós – o deus confessou.

– Parece que ela sabe viver como uma perfeita e estúpida mortal – sibilou Morte.

– Sempre a achei inacreditável – suspirou. – Pena que Tempo nunca me aceitou em sua família.

– Imagino que família vocês formariam – Morte quis gargalhar com o pensamento. – Ainda que Lilith seja filha dele, ela nunca será uma de nós. Independente dos planos que o velho tenha para a bruxinha. Sua mãe tinha um sangue vermelho e latente.

– Mas o de Lili não é assim. O sangue dela se parece muito mais com o nosso do que com o de Morgana, caso você não se lembre – e saiu caminhando de volta ao castelo e ao carro.

– Não me diga que desistiu da sua profecia?

– Tenho coisas mais urgentes para fazer.

– Pensei que nossa característica principal fosse a onipresença.

– Há coisas – e parou para encarar Morte de longe – a que devemos nos dedicar inteiramente.

– Claro que sim – concordou com ironia. – Mande lembranças a Lilith.

– Acho que minha esposa não vai acreditar no seu sentimentalismo.

– Se ela acreditou no seu, o meu irá fazer a sua bruxinha chorar de saudades – e mandou um beijo no ar. – E não esqueça as flores.

            Caos assentiu e, voltando ao seu caminho, fez um lindo buquê de flores silvestres surgirem em suas mãos. E depois de tantos anos, o deus sentiu o que lhe parecia uma lendária emoção. Uma emoção que nem mesmo acreditava que era possível voltar a ter. Sentiu alegria. Depois, ainda mais raro, sentiu amor. Então, jogou fora o pedaço de pão restante que caiu cinza e coberto de mofo.

            Morte acompanhou Caos com os olhos aproveitando o prazer daquela visão e, ao se voltar para o lago, percebeu os patos se debatendo na água até sufocarem e caírem todos sem vida.

            – Pena que não gosto de patos – suspirou a deusa.

 




            – Será que ela morreu?

            – É claro que não, Primavera. Se tivesse, Morte com certeza nos acompanharia – explicou Verão.

            – Mas ela não está se mexendo – atestou ao cutucá-la com uma vareta qualquer como se Lilith fosse um animal peçonhento. – Além disso, Morte nem sempre se mostra quando busca alguém.

            – Ah, mas você acha que ela perderia a chance de se vangloriar com Tempo? Não lembra como Morte se comportou quando foi a vez de Morgana? – lembrou Outono que, do lado de fora, comandava as rédeas da carruagem celestial emprestada por Tempo.

            – Você podia prestar atenção ao seu trabalho!! – criticou Primavera.

            Os três tinham posto Lilith enrolada em sua grossa colcha de retalhos coloridos deitada no banco confortável e bem protegida do frio. Afinal, sendo metade mortal, o frio da noite que predizia o inverno em meio ao céu com flocos de neve poderia congelar a filha do rei.

            – De qualquer forma, – começou Verão – é bom que ela não esteja morta, ou Cronos achará outra forma de levar equilíbrio ao mundo, porque ele vai... quero nem imaginar o que vai fazer com a gente.

            – UÉ, O QUE MAIS EU PODERIA FAZER?? – gritou Primavera desesperado. – Se ela tivesse cooperado, eu não precisaria ter feito ela desmaiar.

            – Mas não tinha outro jeito? Picadas de cobra são perigosas – questionou o condutor, Outono.

             – Mas eu num já falei para você prestar atenção ao seu trabalho??!! – irritou-se Primavera. – E além disso, a Cauda Longa era a que estava disponível, já que estava tão famintamente interessada em Qüiczzar. E também o veneno dela não é tão venenoso assim. É uma serpente muito elegante se querem vocês dois saber. E eu gosto dela – defendeu Primavera verificando o pulso de Lilith. – ELA ESTÁ VIVAAAA!!! – gritou comemorando sua própria salvação e dos irmãos.

            – ELA ESTÁ VIVA!!! – gritou em concordância Verão se ajoelhando e juntando as mãos como se agradecendo em oração, desespero e alívio. Principalmente, alívio.

            Lilith começou a se mexer. Lentamente e aos poucos foi abrindo os olhos. E então sentiu frio e viu Verão e Primavera a olharem tão próximos, como se ela fosse um animal exótico em observação, que se assustou.

             – AAH! – gritou, fazendo os outros dois saltarem para trás. – O que vocês fizeram comigo? Onde eu estou? Para onde estão me levando? Isso é coisa do Tempo, não é? O que que aquele velho quer...

            – Calma, Lilith... nos desculpe, por favor – Verão interrompeu a torrente de perguntas que com certeza ainda seria seguida por muitos outros questionamentos. – Sim, foi Tempo quem nos mandou te buscar.

            – E por que ele mesmo não veio? Está ficando covarde também?

            – Não, não foi isso – começou a garota de traços indígenas. – Ele só não queria te assustar. Ele quer se reaproximar de você.

            – SE REAPROXIMAR? COMO? Me mandando um sonho terrível, ordenando que me sequestrem... ELE ENLOUQUECEU!!! – esbravejou se enrolando cada vez mais na coberta de retalhos.

            – Bem, essa questão do sequestro já foi ideia de outras pessoas, não é mesmo, irmão? – Verão olhou Primavera que ria sem graça.

            – Mas ela disse que não viria com a gente e Tempo foi bem incisivo ao exigir que a gente apenas voltasse com a encomenda – defendeu-se entre os dentes com cochichos e olhos arregalados para a irmã.

            – Mas você não precisava mandar a Cauda Longa mordê-la – censurou Verão.

            – O QUÊ??? UMA SERPENTE ME MORDEU?? – berrou Lilith.

            – É... é... – gagejou Primavera. – Então...

            Os punhos da bruxa se fecharam e a carruagem sacudiu no ar gélido da noite.

            – Eu quero uma explicação! – exigiu.

            A carruagem sacudiu com mais força fazendo os três caírem um sobre o outro.

            – Já entendemos, mas não precisa nos matar, filha de Cronos – falou Verão tentando se levantar quando o coche sacudiu pela terceira ver, agora com mais violência que das outras duas vezes.

            – Mas eu não fiz ...

            – NÃÃÃÃO!! – um grito estrondoso silenciou a discussão dentro do carro. Os três se entreolharam. Era Outono. – Se segurem aí dentro!! – ordenou lá de fora.

            – O que está havendo? – Primavera abriu a portinhola que dava para o lado externo e apenas conseguiu ver que os cavalos de nuvens guiados pelo irmão pareciam fugir de alguma coisa.

            A carruagem voava acima das nuvens, mas, ainda assim, uma chuva de raios vindos de baixo parecia tentar acertar principalmente os cavalos que puxavam o coche. Outono fazia com que subissem e descessem, desviassem e parassem para evitar os raios violentos. Contudo, quanto mais fugia, mais deles pareciam surgir até estarem praticamente sem saída. Um emaranhado de clarões iluminava o céu e certamente surpreendia a comunidade científica que tentaria explicar da forma mais racional possível aquele fenômeno “natural”.

            – O que está acontecendo, irmão? – Primavera repetiu, saindo agarrado ao carro até chegar a Outono e se sentar ao seu lado – Uma tempestade de raios? Isso não faz sentido.

            – Para mim, aquilo é que não faz sentido – disse Outono indicando o que via à frente.

            A uns quatrocentos metros de distância, em meio ao céu da noite, um redemoinho de nuvens se ergueu, provocando uma ventania voraz, que parecia sugar a carruagem. Outono tentou guiar os cavalos para fazerem a volta, mas por mais que se esforçasse, o vendaval se mostrava de uma potência infinitamente maior.

            – Primavera, às rédeas – comandou e subiu no teto do coche.

            O vento era exatamente o elemento sobre o qual Outono tinha o maior domínio, logo, se alguém podia controlar um vendaval, era ele mesmo. E foi o que fez. Ou melhor, o que tentou fazer.

            Usando todo o poder que tinha em si, Outono juntou as mãos e fechou os olhos. Quando os voltou a abrir, estavam completamente enevoados e, com gestos fortes e precisos, Outono levitou enquanto Primavera tentava fugir com a carruagem que levava Verão e Lilith. Em meio ao céu e encarando o redemoinho, que agora já mais parecia um tornado cujo objetivo era se tornar um furacão, o deus indígena iniciou uma dança de movimentos circulares, como se prendesse uma grande quantidade de ar em seus braços. Contudo, o vento permanecia forte, inexorável, como se outra pessoa o comandasse. E Outono continuava, os movimentos mais fortes e de sua boca saíam palavras de ordem para controlar o vento. Diferentes palavras de comando de línguas indígenas diferentes, cada uma delas.

Após muito esforço, o tornado diminuiu e a ventania amenizou, e os olhos de Outono voltaram ao normal. “Excelente”, pensou satisfeito, pois, por mais que ainda ventasse, não era nada que representasse perigo. Primavera, ao perceber que o irmão tinha conseguido, parou a carruagem para o esperar. Pôs o carro de lado e ficou observando o irmão vindo em sua direção, correndo em meio à noite fria de inverno. Lilith então abriu a porta da carruagem.

– Está tudo bem agora?

Mas antes que pudesse responder, o jovem deus viu, então, no mesmo lugar em que o tornado estava minutos atrás, um homem surgir. Um homem que há muitos séculos Primavera não via. Caos.

– OUTOONO!! CUIDAAADO!!

Primavera gritou, apontando para o que quer que estivesse às costas de Outono, que ao se virar e ver Caos, sentiu o perigo iminente envolver a si mesmo.

Lilith olhou assustada para onde parecia estar a ameaça. Mesmo após tantos anos, mesmo em meio ao céu escuro e mesmo com a distância que os separava, a bruxa viu e reconheceu aquele que um dia havia sido seu marido. E sabia que ele a tinha visto.

Caos logo identificou a esposa. Jamais a confundiria. Ela era assim, era única. O deus ergueu os braços e, no mesmo instante, o tornado ressurgiu no céu, mais forte e impiedoso que antes. Agora, um majestoso furacão imperava ao seu comando.

Outono se colocou entre o furacão e a carruagem e, como se tentasse frear duas forças extremas, respirou fundo e, enquanto bloqueava o vento edaz, impeliu o coche com toda a força que tinha em si para o lado oposto. Sentiu uma dor profunda. Foi alvejado por lâminas de gelo e pedras de granizo chicotearam o seu corpo. Tentou respirar, mas não conseguia. Sentiu as mãos de Caos em seu pescoço, tentou libertar-se, mas o deus não estava ali, apenas sua vontade.

            Do carro que flutuava no céu, Primavera e Lilith sentiram a pressão do poder de Outono os empurrarem para longe. A porta bateu e trancou a bruxa do lado de dentro e Primavera segurou as rédeas, tentando não perder o controle dos cavalos. “Outono! Outono!”, pensou desesperado. Olhou para traz e apenas viu o corpo do irmão despencar, sem qualquer resistência, em direção ao chão.



quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

O Senhor Tempo (Capítulo I )

 Tic Tac... Tic tac...

Tic Tac...

Os pensamentos faziam em sua cabeça. Faziam desde sempre e fariam para sempre. Suas mãos velhas e os ossos frágeis doíam. A mudança de temperatura sempre era surpreendente. Os cabelos finos, grisalhos e longos, caíam por cima dos ombros encurvados. O manto que lhe cobria o corpo negro e magro era azul, tão azul e tão intenso quanto alguma coisa pode ser. Em seus detalhes, pequenos pontos dourados vindos do grande primo Sol, que ainda era rei e que por algum tempo ainda reinaria. Apenas os dentes do velho eram intocados por ele mesmo, mas para o resto de si, cada marca no frágil corpo relatava como o tempo passa para o próprio Tempo, que já não queria mais existir, mas que era quem reinava na Terra.

Apesar de não querer mais, não podia simplesmente fechar os olhos, precisava da permissão e, para isso, de alguém para ocupar o seu lugar. Mas já não queria mais esperar, a paciência se fora, mas a ordem nunca vinha. Apenas esperava por ela.

Há séculos decidiu se mudar para uma caverna escondida e que nenhum homem comum, um mortal qualquer, jamais imaginaria onde se localizava. A caverna se estendia por toda extensão subterrânea do planeta, entre túneis e mais túneis que se cruzavam com outras cavernas.  O chão gelado e úmido. As paredes grafite e pétreas. É claro que seriam. Gostava de caminhar por incontáveis horas fingindo estar perdido e fingindo se surpreender quando chegava a algum lugar na superfície. E andava por horas e horas a fio e, quando queria descansar, fechava os olhos e adormecia. O mundo estagnava ao seu bel-prazer e só voltava a girar e os relógios a trabalharem no momento em que Tempo abria de novo os olhos cansados de viver. Há anos perdera a razão de existir, o que era visível em sua aparência idosa e vulnerável.

Como em muitos dias, Tempo saiu andando por aqueles túneis intermináveis, mas desta vez não tentava se enganar sobre o próprio destino. Ia visitar uma velha amiga, se é que ela era amiga de alguém, que morava em um pequeno castelo belga com um lago artificial e quadrado, mas com patos de verdade que faziam questão de voltar todo verão.

– Não esperava que viesse hoje – disse a mulher assim que Tempo entrou no grande salão.

– Preciso da sua ajuda.

– Ainda o mesmo desejo? Você precisa seguir em frente. O tempo é o melhor remédio para curarmos as nossas feridas – e riu da própria piada. A anfitriã tinha a pele branca num tom leitoso em forte contraste com os cabelos e olhos intensamente pretos e que pareciam rir a cada palavra.

– Não estou aqui para as ouvir as suas gracinhas, Morte. Só quero a resposta que sempre me nega.

– Sabe que... Caos também me visitou atrás de uma profecia?! Queria saber do próprio futuro. Ouviu dizer que você está desgostoso e... pela sua aparência, querido amigo rei, acho que os boatos são verdadeiros – disse o olhando de cima a baixo e se aproximou, mostrando os extensos cabelos que roçavam o chão de pedra. – Ele está louco para ter de volta o trono que você roubou ­– sussurrou aos ouvidos de Tempo.

– Não me interessam as aspirações de Caos. Apenas quero a minha resposta. O meu sucessor.

– Sucessora.

– O quê? Sucessora? Não é possível.

– E por que não? Acha mesmo que o grande Tempo, o Tempo Rei não poderia ser enganado por uma mortal qualquer?

– Não fale assim dela, Morte.

– Falo, porque é o que ela é. Não pense que porque você deu tanto de si a ela, a sua querida Morgana virou alguém especial. Ela te enganou. Por todos os anos que você a manteve viva e em segurança, ela apenas mentiu para você. Sua mãe não te ensinou que deuses nunca entregam seus corações a mortais? Eles é que são as peças do jogo, não nós – e parou por alguns segundos encarando o velho que lidava com uma amarga verdade. – Você tem alguém para herdar o seu trono, quem você achou que pertencia a mim, mas em quem eu nunca toquei. Quem te traiu não fui eu. Lilith vive, meu caro amigo, Cronos – e deliciou-se com a dor daquelas palavras.

 

 


            Da entrava da caverna em que Tempo vivia, muitos túneis saíam e levavam a grutas de todos os tamanhos e com funções diferentes. A maior e mais impressionante era a Gruta do Trono. Uma luz azul clara iluminava as paredes de calcário escuro, material de que também era feito o trono ao centro. O rei parecia perdido em meio a pensamentos dolorosos e amargos. Ao lado dele, de pé, uma mulher parecia estar em transe. Com as mãos posicionadas acima de um globo de cristal bruto e esverdeado que flutuava, mas sem o tocar, a mulher sibilava palavras incompreensíveis. De repente, a mulher despertou.

            – Você sempre faz um excelente trabalho, Dia – Tempo elogiou com um sorriso sincero, mas amargurado.

            – Obrigada, senhor. Hoje o céu estará de um azul muito bonito, apesar do frio. Estará lindo.

            – Você sempre acha o céu bonito, Dia, ainda que faça as nuvens desabarem sobre os humanos – intrometeu um homem de roupas escuras como uma noite sem estrelas.

            – A chuva traz a vida, assim como o brilho do sol. Pensei que já tivesse lhe explicado isso, Noite – retrucou a mulher.

            – Trezentas e quarenta e oito – disse Tempo. – E com essa, ela te disse trezentas e quarenta e nove vezes, Noite. Mas não foi para isso que eu chamei vocês. Preciso achar a minha filha.

            – Tempo, Lilith morreu ... – lembrou Noite.

            – ... há séculos – completou Dia.

            – Parece que não. Eu fui enganado. Morgana mentiu para mim.

            – Mas por que ela faria isso? – indagou Dia.

            – Eu não sei. E talvez eu nunca saiba – lamentou. – Mas ela é a nossa esperança contra Caos. Lilith vai me suceder, e quero que vocês a encontrem. Mandem os quatro irem procurar a minha filha.

            – Três, senhor. Em poucas semanas será inverno – corrigiu Noite.

            – Ah, é claro. Os outros três então – concordou o rei. – E a propósito... – lembrou-se de um detalhe – mandem que entreguem isto a ela – e com um gesto de sua mão esquerda, uma caixinha circular de madeira surgiu nas mãos de Dia, e ela sabia exatamente do que se tratava.




sábado, 20 de fevereiro de 2021

inFortunium

Hoje eu acendi um cigarro e apreciei o seu gosto

Acendi porque queria matar alguma parte em mim

Mais uma vez me abandonei no caos que eu sou

Não posso tentar te salvar, porque nunca consegui comigo

Me vi afundar tantas vezes e virei as costas

Andei tanto e acreditei que sabia me guiar

Mas a verdade é que apenas criei mentiras como um familiar.

 

Toda vez que penso em tudo isso,

Percebo que nunca criei raízes

Eu sou apenas galhos de madeira seca

Seca e oca

Por isso, não posso te ajudar.

 

Continuo buscando por alguma coisa real

Nunca a encontro

Parece que guardei tão bem que esqueci seu esconderijo

Eu me flagelo por qualquer um

E agora me torturo por você

E você se tortura por alguém que não sou eu

Por uma dor que eu não causei.

 

Não são culpa sua as minhas ilusões

Meus sonhos são como teias de aranha

Quanto mais tento me desvencilhar, mais eu me prendo

E ao notar, se converteram em pesadelos aqui dentro

E as paredes da minha casa não podem me proteger

As sombras estão aqui.

 


Minha maior inimiga sou eu

Tenho total consciência de tudo

E me permito me perder sempre no mesmo erro.

 

A lógica nunca fez sentido para mim

Mas jamais me deixei ser sentimental

A consciência me prega peças comuns

Tão racionais sem qualquer explicação

Penso tanto e calculo cada centímetro de chão

E tolero que o meu pecado de estimação me acompanhe 

Valorizando sentimentos que não nascem no meu coração

Rejeitando a minha própria trajetória.

 

Eu quero desistir

E agora estou um pouco mais sozinha

Uma das cordas que me prendiam se partiu

E eu não posso remendar as suas pontas, porque não vejo mais o cais.

 

Sombras me cercam enquanto eu durmo

As sinto, mas não as vejo

Apenas esperam que eu dê atenção às suas vozes

Elas me chamam e eu rezo para se afastarem

Mas se vêm de mim, como vão embora?

Vivem na minha mente e se alimentam do meu coração

Parece que eu não tenho futuro.

 


As Moiras brincam e se divertem com o meu destino

Não devia ter dado esse poder a elas

E as sombras apagam o que eu ergui

E vejo desmoronar as minhas muralhas

Tão indefesas.

 

Tento me equilibrar em um único alicerce, pois o outro se partiu

Apenas pude assistir enquanto ruía

E se desfez metade do significado de tudo

Virou poeira na minha existência.

 

Meus olhos ainda me traem

Porque metade de mim não tem mais futuro.