quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

O Senhor Tempo (Capítulo I )

 Tic Tac... Tic tac...

Tic Tac...

Os pensamentos faziam em sua cabeça. Faziam desde sempre e fariam para sempre. Suas mãos velhas e os ossos frágeis doíam. A mudança de temperatura sempre era surpreendente. Os cabelos finos, grisalhos e longos, caíam por cima dos ombros encurvados. O manto que lhe cobria o corpo negro e magro era azul, tão azul e tão intenso quanto alguma coisa pode ser. Em seus detalhes, pequenos pontos dourados vindos do grande primo Sol, que ainda era rei e que por algum tempo ainda reinaria. Apenas os dentes do velho eram intocados por ele mesmo, mas para o resto de si, cada marca no frágil corpo relatava como o tempo passa para o próprio Tempo, que já não queria mais existir, mas que era quem reinava na Terra.

Apesar de não querer mais, não podia simplesmente fechar os olhos, precisava da permissão e, para isso, de alguém para ocupar o seu lugar. Mas já não queria mais esperar, a paciência se fora, mas a ordem nunca vinha. Apenas esperava por ela.

Há séculos decidiu se mudar para uma caverna escondida e que nenhum homem comum, um mortal qualquer, jamais imaginaria onde se localizava. A caverna se estendia por toda extensão subterrânea do planeta, entre túneis e mais túneis que se cruzavam com outras cavernas.  O chão gelado e úmido. As paredes grafite e pétreas. É claro que seriam. Gostava de caminhar por incontáveis horas fingindo estar perdido e fingindo se surpreender quando chegava a algum lugar na superfície. E andava por horas e horas a fio e, quando queria descansar, fechava os olhos e adormecia. O mundo estagnava ao seu bel-prazer e só voltava a girar e os relógios a trabalharem no momento em que Tempo abria de novo os olhos cansados de viver. Há anos perdera a razão de existir, o que era visível em sua aparência idosa e vulnerável.

Como em muitos dias, Tempo saiu andando por aqueles túneis intermináveis, mas desta vez não tentava se enganar sobre o próprio destino. Ia visitar uma velha amiga, se é que ela era amiga de alguém, que morava em um pequeno castelo belga com um lago artificial e quadrado, mas com patos de verdade que faziam questão de voltar todo verão.

– Não esperava que viesse hoje – disse a mulher assim que Tempo entrou no grande salão.

– Preciso da sua ajuda.

– Ainda o mesmo desejo? Você precisa seguir em frente. O tempo é o melhor remédio para curarmos as nossas feridas – e riu da própria piada. A anfitriã tinha a pele branca num tom leitoso em forte contraste com os cabelos e olhos intensamente pretos e que pareciam rir a cada palavra.

– Não estou aqui para as ouvir as suas gracinhas, Morte. Só quero a resposta que sempre me nega.

– Sabe que... Caos também me visitou atrás de uma profecia?! Queria saber do próprio futuro. Ouviu dizer que você está desgostoso e... pela sua aparência, querido amigo rei, acho que os boatos são verdadeiros – disse o olhando de cima a baixo e se aproximou, mostrando os extensos cabelos que roçavam o chão de pedra. – Ele está louco para ter de volta o trono que você roubou ­– sussurrou aos ouvidos de Tempo.

– Não me interessam as aspirações de Caos. Apenas quero a minha resposta. O meu sucessor.

– Sucessora.

– O quê? Sucessora? Não é possível.

– E por que não? Acha mesmo que o grande Tempo, o Tempo Rei não poderia ser enganado por uma mortal qualquer?

– Não fale assim dela, Morte.

– Falo, porque é o que ela é. Não pense que porque você deu tanto de si a ela, a sua querida Morgana virou alguém especial. Ela te enganou. Por todos os anos que você a manteve viva e em segurança, ela apenas mentiu para você. Sua mãe não te ensinou que deuses nunca entregam seus corações a mortais? Eles é que são as peças do jogo, não nós – e parou por alguns segundos encarando o velho que lidava com uma amarga verdade. – Você tem alguém para herdar o seu trono, quem você achou que pertencia a mim, mas em quem eu nunca toquei. Quem te traiu não fui eu. Lilith vive, meu caro amigo, Cronos – e deliciou-se com a dor daquelas palavras.

 

 


            Da entrava da caverna em que Tempo vivia, muitos túneis saíam e levavam a grutas de todos os tamanhos e com funções diferentes. A maior e mais impressionante era a Gruta do Trono. Uma luz azul clara iluminava as paredes de calcário escuro, material de que também era feito o trono ao centro. O rei parecia perdido em meio a pensamentos dolorosos e amargos. Ao lado dele, de pé, uma mulher parecia estar em transe. Com as mãos posicionadas acima de um globo de cristal bruto e esverdeado que flutuava, mas sem o tocar, a mulher sibilava palavras incompreensíveis. De repente, a mulher despertou.

            – Você sempre faz um excelente trabalho, Dia – Tempo elogiou com um sorriso sincero, mas amargurado.

            – Obrigada, senhor. Hoje o céu estará de um azul muito bonito, apesar do frio. Estará lindo.

            – Você sempre acha o céu bonito, Dia, ainda que faça as nuvens desabarem sobre os humanos – intrometeu um homem de roupas escuras como uma noite sem estrelas.

            – A chuva traz a vida, assim como o brilho do sol. Pensei que já tivesse lhe explicado isso, Noite – retrucou a mulher.

            – Trezentas e quarenta e oito – disse Tempo. – E com essa, ela te disse trezentas e quarenta e nove vezes, Noite. Mas não foi para isso que eu chamei vocês. Preciso achar a minha filha.

            – Tempo, Lilith morreu ... – lembrou Noite.

            – ... há séculos – completou Dia.

            – Parece que não. Eu fui enganado. Morgana mentiu para mim.

            – Mas por que ela faria isso? – indagou Dia.

            – Eu não sei. E talvez eu nunca saiba – lamentou. – Mas ela é a nossa esperança contra Caos. Lilith vai me suceder, e quero que vocês a encontrem. Mandem os quatro irem procurar a minha filha.

            – Três, senhor. Em poucas semanas será inverno – corrigiu Noite.

            – Ah, é claro. Os outros três então – concordou o rei. – E a propósito... – lembrou-se de um detalhe – mandem que entreguem isto a ela – e com um gesto de sua mão esquerda, uma caixinha circular de madeira surgiu nas mãos de Dia, e ela sabia exatamente do que se tratava.




Um comentário:

  1. Você é incrivel !!!
    Ta sempre se superando !!
    Cada texto mais lindo que o outro 😍
    Albuquerque ❤

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