quinta-feira, 11 de março de 2021

O Senhor Tempo (Capítulo III )

Os seus pés descalços caminhavam brancos e gelados pelo chão frio de pedra. A Câmara das Velas era o seu lugar de maior prazer. Confortava-se em ter perante si as almas tão insignificantes dos mortais, seres ainda mais insignificantes. Nasciam, viviam mediocremente e então a alimentavam, momento em que tinham alguma serventia. “Que curioso o Tempo. Só queria fechar os olhos e dormir”, como ele podia ter se tornado tão estúpido? Não fazia sentido. Claro que a morte de Tempo seria boa para ela, a fortaleceria. Não era todo dia que um deus de poderes tão magníficos quanto os dela se rendia. Contudo, a Tríade do Equilíbrio Divino deveria ser assim, equilibrada. Assim que alguém ocupasse o lugar de Cronos, tão logo ela perderia os poderes do deus. Serviria então somente como um receptáculo, e ela não queria isso. Desejava aquele poder para, diante de toda a criação, reinar absoluta.

Caminhou por entre as pilhas e os amontoados de velas. Algumas brilhavam tão forte que poderia jurar que durariam ainda centenas de anos. Mas eram essas as suas preferidas. Deleitava-se em ver o desespero na cara dos humanos. Prendiam-se a cada coisa banal. Prendiam-se à própria vida e, mais tediosamente, à vida dos olhos, tornando-se fracos, vulneráveis, suscetíveis. E em duas pilastras, as velas que nunca poderia tocar. Apenas seus próprios donos poderiam apagar as chamas. Para a própria alegria, logo, logo Tempo viria a sua presença e, naquela sala, perante seus irmãos, apagaria a própria vela.

Como aquilo a irritava. Não podia dominar aquelas chamas. Caos e Tempo jamais se curvariam a ela de bom grado. Como ela queria poder tocar na vitalidade deles. Seria tão poderosa se fosse a única. Como aquilo a irritava. Irritava. Uma emoção tão humana e tão patética. O que a irritava ainda mais. Mais. Mais.

Apagou uma vela brilhante. Uma chama tão vermelha de uma jovem na majestade da juventude e da força.

Deliciou-se naquele prazer. Apagou a vela e alimentou-se.

– Quando você chegou aqui? – perguntou ao deus que estragava seu momento de diversão.

– Isso faz diferença? – Caos respondeu entre um trago e outro de um cigarro. Os cabelos ruivos e perfeitos se avermelhavam pelas chamas das velas.

– Depende da razão de estar aqui – Morte retrucou.

– Aposentou seus poderes, Oráculo?

Morte o encarou. O rosto branco e cadavérico da deusa retesado.

– Me acompanhe.

Deu as costas a Caos e tão logo estavam em uma outra câmara.

– Sempre me surpreendo com o tamanho infinito desse seu pequeno castelo.

Morte não respondeu. Caos sabia como funcionava o castelo. Era, na verdade, um local de passagem somente para diversas outras dimensões em que cada câmara ficava, o que se tornava necessário para a explanação total de cada um dos poderes da deusa.

Estavam agora em uma grande sala sem chão. Toda num tom anil profundo. No centro da sala, apenas um punhado de alguma coisa que se assemelhava a um globo de fumaça se movimentava de modo irregular. Morte e Caos pararam diante dele. A deusa ergueu os braços e o rosto. “Possua-me”, pensou. A fumaça entrou na deusa pelo nariz e pela boca. Morte então assumiu uma forma fantasmagórica. Os olhos de Caos ficaram negros, tão negros, totalmente, para lhe mostrarem a profecia. E o deus a viu.

Viu.

Morte voltou à forma normal, observando o desespero de Caos.

- Era para você ter me mostrado o futuro – sussurrou.

- Oh, Caos, querido... às vezes, somente o passado é capaz de nos mostrar o futuro com clareza.

- Você não tem o direito de manipular as lembranças – cerrou os dentes brancos e perfeitos.

- Mas eu não manipulei – defendeu. – Apenas mostrei a verdade, tudo o que aconteceu. Você precisa aceitar.

- Não. Lilith jamais faria isso comigo.

- Mas ela fez. E agora, vai terminar.

- Cronos quer morrer, não faz sentido – lembrou confuso.

- Oh, Caos. Você acreditou mesmo nisso? Lilith voltou para terminar o que havia começado. Ela jamais te amou.

- Pare de mentir. É só isso que você faz? Mentir?

- Eu? Mas quem mentiu não fui eu – riu. – Ela jamais te amou.

- CALE A BOCA!! – esbravejou Caos, provocando um tremor no ambiente vazio e sem chão.

- Não adianta espernear, Caos, querido – sibilou Morte. – É nisso que dá o amor – sorriu.

 


 

Alguém bateu à porta, mas, novamente, Lilith não respondeu. Passava os dias deitada, tentando negar as lembranças e as próprias ações. A comida se acumulava em um canto. Às vezes beliscava uma coisa ou outra, ainda que não sentisse fome.

Alguém bateu à porta outra vez e continuou a ser ignorado.

Contudo, assim que parou, Lilith levantou, por mais que quisesse continuar deitada, com os cabelos cacheados e bagunçados, calçou os chinelos em pantufas e saiu pela porta destrancada sem que usasse qualquer chave visível. Seguiu pelo corredor, por mais que quisesse ficar no quarto de pedra. Chegou à sala em que agora Tempo jantava em companhia de Dia, Noite, Verão, Inverno e Primavera, em meio a risadas e troca de ofensas amigáveis.

– Até que enfim, querida. Pensei que fosse viver para sempre naquele quarto.

– E gostaria de ficar mesmo – respondeu fazendo um silêncio absoluto entrar batendo as asas, pairar e pousar por sobre a câmara.

– Ah, por favor... junte-se a nós e coma. Eu estava com saudades da minha filha.

– Por favor digo eu. Não me insulte. E eu não vou fazer o que você quer.

Tempo parou a mão que levava à boca o garfo com um gordo pedaço de rosbife. Devolveu o garfo ao prato e recostou-se à cadeira, fitando Lilith, que o encarava da outra ponta da mesa.

– Você nem mesmo sabe o porquê...

– JÁ DISSE PARA NÃO ME INSULTAR! EU SEI EXATAMENTE O QUE VOCÊ QUER E MINHA RESPOSTA É NÃO! – esbravejou.

– Apenas ouça o que seu pai tem a dizer... – Dia tentou mediar.

– Esse velho não tem nada para mim – cortou. – Ele só quer me usar e eu não vou fazer o que ele quer. Não de novo – afirmou saindo sem olhar para trás.

Todos à mesa se perguntaram do que Lilith dizia. Como “de novo”?

Enquanto isso, Tempo apenas afirmava para si mesmo “Sim, você vai fazer, Filha de Cronos”.

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