Os seus pés descalços
caminhavam brancos e gelados pelo chão frio de pedra. A Câmara das Velas era o
seu lugar de maior prazer. Confortava-se em ter perante si as almas tão
insignificantes dos mortais, seres ainda mais insignificantes. Nasciam, viviam
mediocremente e então a alimentavam, momento em que tinham alguma serventia. “Que
curioso o Tempo. Só queria fechar os olhos e dormir”, como ele podia ter se
tornado tão estúpido? Não fazia sentido. Claro que a morte de Tempo seria boa
para ela, a fortaleceria. Não era todo dia que um deus de poderes tão magníficos
quanto os dela se rendia. Contudo, a Tríade do Equilíbrio Divino deveria ser
assim, equilibrada. Assim que alguém ocupasse o lugar de Cronos, tão logo ela
perderia os poderes do deus. Serviria então somente como um receptáculo, e ela
não queria isso. Desejava aquele poder para, diante de toda a criação, reinar
absoluta.
Caminhou por entre as
pilhas e os amontoados de velas. Algumas brilhavam tão forte que poderia jurar
que durariam ainda centenas de anos. Mas eram essas as suas preferidas.
Deleitava-se em ver o desespero na cara dos humanos. Prendiam-se a cada coisa
banal. Prendiam-se à própria vida e, mais tediosamente, à vida dos olhos,
tornando-se fracos, vulneráveis, suscetíveis. E em duas pilastras, as velas que
nunca poderia tocar. Apenas seus próprios donos poderiam apagar as chamas. Para
a própria alegria, logo, logo Tempo viria a sua presença e, naquela sala,
perante seus irmãos, apagaria a própria vela.
Como aquilo a
irritava. Não podia dominar aquelas chamas. Caos e Tempo jamais se curvariam a
ela de bom grado. Como ela queria poder tocar na vitalidade deles. Seria tão
poderosa se fosse a única. Como aquilo a irritava. Irritava. Uma emoção tão
humana e tão patética. O que a irritava ainda mais. Mais. Mais.
Apagou uma vela
brilhante. Uma chama tão vermelha de uma jovem na majestade da juventude e da
força.
Deliciou-se naquele
prazer. Apagou a vela e alimentou-se.
– Quando você chegou
aqui? – perguntou ao deus que estragava seu momento de diversão.
– Isso faz diferença?
– Caos respondeu entre um trago e outro de um cigarro. Os cabelos ruivos e
perfeitos se avermelhavam pelas chamas das velas.
– Depende da razão de
estar aqui – Morte retrucou.
– Aposentou seus
poderes, Oráculo?
Morte o encarou. O
rosto branco e cadavérico da deusa retesado.
– Me acompanhe.
Deu as costas a Caos e
tão logo estavam em uma outra câmara.
– Sempre me surpreendo
com o tamanho infinito desse seu pequeno castelo.
Morte não respondeu.
Caos sabia como funcionava o castelo. Era, na verdade, um local de passagem
somente para diversas outras dimensões em que cada câmara ficava, o que se
tornava necessário para a explanação total de cada um dos poderes da deusa.
Estavam agora em uma
grande sala sem chão. Toda num tom anil profundo. No centro da sala, apenas um
punhado de alguma coisa que se assemelhava a um globo de fumaça se movimentava
de modo irregular. Morte e Caos pararam diante dele. A deusa ergueu os braços e
o rosto. “Possua-me”, pensou. A fumaça entrou na deusa pelo nariz e pela boca.
Morte então assumiu uma forma fantasmagórica. Os olhos de Caos ficaram negros,
tão negros, totalmente, para lhe mostrarem a profecia. E o deus a viu.
Viu.
Morte voltou à forma
normal, observando o desespero de Caos.
- Era para você ter me
mostrado o futuro – sussurrou.
- Oh, Caos, querido...
às vezes, somente o passado é capaz de nos mostrar o futuro com clareza.
- Você não tem o
direito de manipular as lembranças – cerrou os dentes brancos e perfeitos.
- Mas eu não manipulei
– defendeu. – Apenas mostrei a verdade, tudo o que aconteceu. Você precisa
aceitar.
- Não. Lilith jamais
faria isso comigo.
- Mas ela fez. E
agora, vai terminar.
- Cronos quer morrer,
não faz sentido – lembrou confuso.
- Oh, Caos. Você
acreditou mesmo nisso? Lilith voltou para terminar o que havia começado. Ela
jamais te amou.
- Pare de mentir. É só
isso que você faz? Mentir?
- Eu? Mas quem mentiu
não fui eu – riu. – Ela jamais te amou.
- CALE A BOCA!! –
esbravejou Caos, provocando um tremor no ambiente vazio e sem chão.
- Não adianta
espernear, Caos, querido – sibilou Morte. – É nisso que dá o amor – sorriu.
Alguém bateu à porta,
mas, novamente, Lilith não respondeu. Passava os dias deitada, tentando negar
as lembranças e as próprias ações. A comida se acumulava em um canto. Às vezes
beliscava uma coisa ou outra, ainda que não sentisse fome.
Alguém bateu à porta
outra vez e continuou a ser ignorado.
Contudo, assim que
parou, Lilith levantou, por mais que quisesse continuar deitada, com os cabelos
cacheados e bagunçados, calçou os chinelos em pantufas e saiu pela porta
destrancada sem que usasse qualquer chave visível. Seguiu pelo corredor, por
mais que quisesse ficar no quarto de pedra. Chegou à sala em que agora Tempo
jantava em companhia de Dia, Noite, Verão, Inverno e Primavera, em meio a
risadas e troca de ofensas amigáveis.
– Até que enfim,
querida. Pensei que fosse viver para sempre naquele quarto.
– E gostaria de ficar
mesmo – respondeu fazendo um silêncio absoluto entrar batendo as asas, pairar e
pousar por sobre a câmara.
– Ah, por favor...
junte-se a nós e coma. Eu estava com saudades da minha filha.
– Por favor digo eu.
Não me insulte. E eu não vou fazer o que você quer.
Tempo parou a mão que
levava à boca o garfo com um gordo pedaço de rosbife. Devolveu o garfo ao prato
e recostou-se à cadeira, fitando Lilith, que o encarava da outra ponta da mesa.
– Você nem mesmo sabe
o porquê...
– JÁ DISSE PARA NÃO ME
INSULTAR! EU SEI EXATAMENTE O QUE VOCÊ QUER E MINHA RESPOSTA É NÃO! –
esbravejou.
– Apenas ouça o que
seu pai tem a dizer... – Dia tentou mediar.
– Esse velho não tem
nada para mim – cortou. – Ele só quer me usar e eu não vou fazer o que ele
quer. Não de novo – afirmou saindo sem olhar para trás.
Todos à mesa se
perguntaram do que Lilith dizia. Como “de novo”?
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